A geografia da alma freudiana

A Geografia

Ao pesquisar as viagens de Freud a mais de 40 cidades, como Roma, Nova York e Londres, autor associa a experiência do estrangeiro à posição errática e excêntrica do sujeito do inconsciente

Publicado na revista MENTE & CÉREBRO – Ano XIII – nº 152 – Pág. 12
Setembro de 2005

Giovanna Bartucci

“De onde vem a psicanálise e sobretudo para onde vai? Que horizontes e que lugares lhe reserva o terceiro milênio?” São essas as perguntas que servem de bússola a Giancarlo Ricci, em As cidades de Freud, trabalho cuja originalidade consistiu em transformar as 40 cidades mais emblemáticas do percurso freudiano – da Freiberg natal à Londres derradeira – em metáforas que permitiram a Freud criar a psicanálise.

De fato, entre uma cidade e outra, vemos emergir o percurso ao longo do qual se desenvolveu o itinerário intelectual e científico de Freud. E, ainda que a metáfora do viajar seja evocada pelo Professor para esclarecer o funcionamento e o desenvolvimento do itinerário analítico, neste percurso audacioso pela geografia da alma freudiana que Ricci nos propõe, “as cidades perfilam-se como etapas de uma experiência analítica” ao operar como diferentes “portos”, na constituição do grande homem que foi Freud. Não poderia ser diferente uma vez que, ao acompanharmos o Professor nas viagens que realizou durante a vida, constatamos que as cidades convertem-se em cidades que acolhem e que lhe são hostis, em portos de origem e de chegada, de entrada e de saída. Alma e geografia, cujo encontro contraditório é apenas aparente, vêm dar lugar a uma obra – a psicanálise – que alterou a sua vida e a de tantos outros.

Assim, o mito da origem – que pode bem ser pensado em forma de uma pergunta situada no futuro do pretérito, “quem teria sido quando ainda não sabia que era?” – será o porto de partida que entrelaçará a criação da psicanálise e o nascimento de seu criador, Sigmund Freud, em Freiburg, no ano de 1856. “Quando nasci, uma velha camponesa profetizou para minha mãe que ela estava dando ao mundo, com seu primeiro filho, um grande homem”, lembra Freud.

Profecia cumprida, o mito da origem terá feito parte de uma primeira e longínqua “obra de fantasia” produzida pelo trabalho do inconsciente que, com o passar dos anos, finda por transformar a “cidade natal” em uma “cidade estrangeira”. Em outras palavras, o percurso de transformar a cidade natal em cidade estrangeira – experiência distinta da do mito de origem – implica em responder à pergunta “de onde venho” e, possivelmente, em refletir também acerca daquilo que é genericamente chamado “destino”.

Acrescente-se ainda que se a produção freudiana da década de 30, e a morte de Freud no exílo, na cidade de Londres, em setembro de 1939, orientam a nossa atenção para movimentos culturais, intelectuais ou artísticos dos primeiros decênios do século XX, apontam também para o espírito do pensamento freudiano cujo destino coincide com “aquilo que ainda precisa ser dito sobre a psicanálise ou a partir dela”, como sugere Ricci de forma original.

Vale salientar, contudo, que o percurso entre a “origem” e o “destino” foi realizado, por Freud, por meio da experiência de se sentir estrangeiro. E ainda que não apareça, nos pensamentos do Professor, a idéia de uma “terra prometida”, ou seja, a localização de um lugar a ser atingido e no qual se estabelecer, Freud jamais deixará de experimentar este sentimento. E, com efeito, se “tornamo-nos sujeitos ao inconsciente quando falamos em ‘primeira pessoa’ desse acontecimento e desses traços” – ou seja, quando somos nós que dizemos algo sobre a nossa proveniência –, não à toa o autor associa a experiência de sentir-se estrangeiro à posição do sujeito do insconsciente: excêntrica, errática, sem morada fixa.

O fato é que “considerar-se estrangeiro para o verdadeiro viajante ainda é pouco”. Logo, Freud será “tão estrangeiro aos lugares onde vive que está sempre em casa”. Como também salienta Ricci, “a cidade habitada por Freud é como uma ‘fábrica de pensamentos’, sua obra é comparável à ‘obra-prima do tecelão’: um laboratório de pensamentos nunca dantes pensados ou formulados…”

Será, então, essa “casa-cidade-pensamento” que permitirá a Freud reformular e reconsiderar a especificidade da psicanálise sempre que suas certezas vacilem e que sua abordagem lhe pareça incompleta – ou, ainda, a cada cisão, ruptura, afastamento ou demissão de colaboradores seus do movimento psicanalítico –, transformando o tema do exílo em termos de uma fantasia de conquista. “Temos até a impressão de que o esforço de seu pensamento aponta (…) para a evidenciação dos aspectos mais enigmáticos, menos demonstráveis, mais improváveis” da teoria psicanalítica, observa o autor de forma certeira.

Assim, ao redesenhar o mapa dentro do qual se desenrola a empresa freudiana – os primeiros passos, as adversidades, as orientações, os desvios, as abordagens –, constatamos, com Ricci, que ao situar-se na posição de quem não tem nada a perder, e nem mesmo nenhum débito a pagar, o viajante assíduo que foi Freud transforma o itinerário em percurso. De fato, da mesma forma que o percurso começa quando se percebe que somos nós mesmos os mais distantes, a única certeza que podemos ter é a de que chegar será sempre e eternamente o mesmo que partir.