O outro da cena – Freud com Jean-Martin Charcot

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O psiquiatra e psicanalista Antonio Quinet compõe uma peça teatral sobre a histeria a partir do encontro histórico de Freud com Jean-Martin Charcot na Paris do fim do século XIX

Publicado na revista MENTE & CÉREBRO – Ano XIV – nº 155 – Págs. 12-13
Dezembro de 2005

Giovanna Bartucci

Falar da histeria por meio do teatro. Foi esse o desafio que o psiquiatra e psicanalista Antonio Quinet lançou para si próprio em A lição de Charcot. Composto de “A peça” e “Anexos” contextualizadores, acrescidos de ilustrações e fotografias de época, o livro percorre ainda as diferentes concepções de “histeria”, do antigo Egito à atualidade. Quinet é reconhecidamente um professor notável – “o professor não me deixa cessar de explicar”, afirma o próprio autor. Mas o que se teatraliza no livro, contudo, é uma construção estética capaz de dar a ver que “o histérico é o que melhor demonstra que o desejo inconsciente é o desejo do Outro, pois não deseja sem desejar o desejo do Outro, no qual seu próprio desejo está amarrado, moldado ou dirigido”.

Ambientada na mansão de Charcot e no Hospital “La Salpêtrière”, em Paris, “num momento fictício telescopado entre novembro de 1885 e o ano de 1888”, no qual Freud vê brotar em si as origens da psicanálise, a peça traz à cena uma mise-en-scène que finda por reproduzir a própria dinâmica psíquica que concerne à histeria. O cenário? “Apenas um divã que, ao longo da peça, se transforma em maca, sofá, leito de enfermaria etc. Toda a peça se passa em dois planos: o da realidade e o da Outra Cena.” Com efeito, o plano chamado de “plano da realidade” é, na verdade, habitado por uma “Outra Cena” cuja superfície é apenas a “deixa”, a “dica” para essa outra “peça” que é o inconsciente. O “plano da realidade” do inconsciente, por sua vez, permanecerá para sempre incognoscível, na medida em que sabemos apenas sobre seus efeitos de superfície.

Terá sido, então, por meio de sua participação nas conferências (as Leçons) de Jean-Martin Charcot – médico renomado que, ao se consagrar à histeria, a partir de 1870, é o primeiro a fazer dela uma entidade clínica respeitável e que conquista fama internacional graças ao serviço pelo qual é responsável na Salpêtrière – que Freud viu seu mundo adquirir nova coloração. “Charcot está demolindo todas as minhas concepções e todos os meus esquemas! Saio de suas lições (com) a cabeça cheia de ideias novas sobre a perfeição (…). Nenhum homem jamais exerceu tamanha influência sobre mim!”, atesta o Freud de Quinet.

De fato, o caminho percorrido por Freud foi considerável: do abandono do estudo de anatomia patológica em janeiro de 1886 (somado à decisão de começar a se ocupar da clínica) à constatação moderna de que “a histeria não é apenas um tipo de sintoma cujos vestígios encontramos nos transtornos conversivos e dissociativos, mas um tipo clínico de neurose – ou seja, uma forma de lidar com a castração que se distingue da fobia e da neurose obsessiva”. A histeria “é também uma estratégia do desejo específica e distinta de tantas outras. E, além disso, uma forma de laço social entre as pessoas”, salienta Quinet.

A singularidade de A lição de Charcot repousa, então, na capacidade do autor em tornar acessível a leigos e especialistas, por meio de uma leitura tão prazerosa quanto repleta de conhecimento, um tema como a constituição da configuração subjetiva do homem moderno. Entretanto, caso consideremos que a contemporaneidade tem sido marcada por um profundo desejo de normalização, a singularidade de A lição adquire significado ainda mais amplo.

Em seus trabalhos mais recentes, a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco tem chamado a atenção para a substituição do paradigma da histeria, predominante no fim do século XIX, pelo paradigma da depressão – tal substituição se fazendo acompanhar de uma valorização dos processos psicológicos de normalização em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente. Assim, como característica do advento das sociedades democráticas (que têm como base o confronto permanente entre o mesmo e o outro), o conflito neurótico, tratado na atualidade como depressão, já não decorreria de nenhuma causalidade psíquica oriunda do inconsciente. Influenciada também por laboratórios farmacêuticos, planos de saúde e pesquisas organicistas, ao abandonar o modelo nosográfico em prol de uma classificação dos comportamentos, a psiquiatria acaba por reduzir a psicoterapia a uma técnica de supressão de sintomas.

É à medida que a concepção tradicional de enfermidade, centrada na ideia de etiologia, perde terreno em face da articulação dos sintomas sob a forma de síndromes que se torna crucial recuperarmos a ideia de que o conflito psíquico é paradigmático em Freud. Como nos alerta Quinet, “ao abordarmos as manifestações psíquicas e somáticas como transtornos, como o faz a psiquiatria atual, estamos rejeitando o sujeito em todas as suas dimensões: sujeito da história, sujeito de desejo, sujeito de direito”. A lição de Charcot chegou, de fato, em boa hora.