Falar de amor à beira do abismo – sobre a idéia de resiliência

Boris Cyrulnik

Boris Cyrulnik

Produzido em 2009 – inédito

Giovanna Bartucci

Falar de amor à beira do abismo (Martins Fontes,182 páginas), de Boris Cyrulnik, tem como tema a resiliência, ou seja, a capacidade dos seres humanos de se recuperar de uma experiência traumática, ou mesmo de se adaptar à “má sorte” ou às mudanças, a maneira de um antidestino. Assim, se, para o autor, o “destino” é pré-determinado por meio de experiências vividas na infância, superar um trauma a maneira de um antidestino implica que a experiência da resiliência deverá trazer consigo uma “impressão de sursis (de suspensão) que dá um gosto de desespero à vida que se perdeu, mas aguça o prazer de viver o que ainda é possível”. De forma suscinta, “treinar-se psiquicamente para adquirir novas abilidades relacionais, trabalhar com a história que constitui nossa identidade, aprender a pensar em outros termos e militar contra os esteriótipos que a cultura expressa a respeito dos feridos resumem o compromisso ético da resiliência”, afirma.

De fato, não à toa, o neuropsiquiatra, etólogo de formação, e chefe de ensino da “clínica do apego”, na Universidade de Toulon, França, tem se dedicado a etologia humana, ramo da pesquisa do comportamento que estuda os costumes humanos como fatos sociais. Assim, para o autor, quer uma “lesão seja curável ou não”, o contexto afetivo e social será o que deverá propor ao “lesionado” usar suas competências para reaprender outra maneira de viver. Como exemplifica Cyrulnik, “não faz muitos anos, alguém que sofresse uma lesão medular era consertado mais ou menos bem e depois colocado num estabelecimento onde, tristemente, quase não vivia”. Hoje, “o modo como o meio familiar e cultural fala da ferida pode atenuar o sofrimento ou agravá-lo, conforme o relato com que cerca o homem machucado”. Com efeito, o autor entende que “num contexto social abastado, o conflito transforma-se numa esperança libertadora. Numa sociedade difícil, as pessoas se submetem felizes ao grupo familiar, refugiam-se nele (…) Mas, numa civilização tolerante, a família que dá ao jovem a força para partir adquire um efeito de entrave se não for substituída por uma comunidade acolhedora”. O sobreinvestimento de capacidades desaproveitadas, o questionamento do olhar social e a conjugação dos estilos afetivos serão, então, o que constituirão os elementos com os quais Falar de amor à beira do abismo tecerá a rede que impulsionará os “lesionados” de volta à vida.

O que caracteriza a leitura de Cyrulnik, entretanto, é o fato de que o autor entende que não é o acontecimento traumático que é transmitido e altera a pessoa de convívio próximo, por exemplo, mas sua representação. “Quando o ferido tem apoio suficiente de seu meio supera o trauma às vezes melhor que o parente que se acredita estar protegido e é abandonado ao horror do que imagina”, afirma. Nessa medida, “adaptações” a traumas não necessariamente remanejam sua representação. Para o autor, as condições íntimas dos “lesionados”, articuladas a uma vizinhança e a uma cultura que “tutelem o renascimento”, serão o que possibilitarão o “remanejamento” da representação.

Com efeito, em sua tentativa de compreender as experiências traumáticas e suas conseqüências sobre os seres humanos, Cyrulnik termina por estabelecer um diálogo multidisciplinar por meio da biologia, da perspectiva comportamental e da psicologia. No entanto, na medida em que, para o autor, o fundamental é a função que a representação exerce para cada sujeito, o que se destaca em sua leitura, afinal, é a função exercida pelo olhar do Outro.

Assim, se é exatamente pelo fato de que o olhar é um dos suportes do desejo do Outro que o sujeito é afetado pelo olhar, enquanto objeto de investimento do outro, a cada exemplo dado, a cada caso clínico compartilhado, o leitor finda por acompanhar Cyrulnik nas desconstruções que realiza, das representações que constata estarem presentes em torno de cada experiência traumática. O encontro de diferentes representações, ou de representações não compartilhadas, acerca de uma mesma experiência traumática, será, então, o que tornará possível o “remanejamento” dos investimentos – amorosos, ou não – em questão. Melhor dito: será por meio da experiência de diferentes “estilos afetivos” – ou seja, da experiência de diferentes olhares – que representações serão passíveis de serem alteradas, acredita Cyrulnik.