O Deus Exilado – sobre os cristãos gnósticos

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Produzido em 2009 – inédito

Giovanna Bartucci

“A vida nada mais é que a chance única, excepcional, de se conhecer”, nos assegura o 11º mandamento da tábua de mandamentos dos mandeanos, relíquia viva de uma história prestes a se perder. Único grupo gnóstico que sobreviveu em todo o mundo, chegando intocado ao século 21, os mandeanos, hoje, fazem parte da diáspora dos refugiados, resultante da guerra iniciada no Iraque, afirma Marilia Fiorillo, uma das maiores especialistas brasileiras em gnosticismo, em O Deus Exilado. Breve História de uma Heresia (Civilização Brasileira), seu livro mais recente.

Anterior ao Cristianismo, o gnosticismo surgiu nos 3 primeiros séculos de nossa era, a leste de Roma. Vigoroso e pluralista o suficiente para acolher “o exagero de se achar natural que cada um pensasse o que bem quisesse, e interpretasse a mensagem do fundador conforme seu entendimento” – nos conta Fiorillo com bom humor –, os cristãos gnósticos consideravam-se os cristãos de verdade, opositores dos “cristãos falsos”, ou seja, os futuros católicos. Extremamente influentes no Egito, na Síria e na Ásia Menor, foram populares a ponto de desencadear a primeira guerra anti-herética de uma Igreja iniciante.

Nos primeiros séculos de nossa era, contudo, ninguém sabia quem era ou deixava de ser herege. “As comunidades cristãs se conduziam com razoável autonomia, e dezenas de evangelhos circulavam livremente, todos tidos como autênticos”, diz Fiorillo. “Herético e ortodoxo eram termos que variavam de cidade para cidade”. De fato, O Deus Exilado, que tem como tema central a luta contra os dissidentes, demonstra que o cristianismo primitivo, o dos 3 primeiros séculos, quase nada tinha em comum com a doutrina transformada em religião oficial pelo imperador Constantino, no século IV, e logo tornada religião única e obrigatória do Império Romano.

Não à toa, “deu muito trabalho, nos 3 primeiros séculos, erradicar os cristãos gnósticos”, afirma a autora. Suas diferenças se fazem notar: uma mentalidade religiosa, uma forma de espiritualidade, um modo original de conceber e tratar a esfera do sagrado, o gnosticismo não é uma doutrina circunscrita a nenhum período ou tradição, e se manifesta no interior de várias delas, de modo descontinuado. Os gnósticos, afinal, se opõem aos crentes habituais, já que consideram a fé um atalho errado para chegar a Deus. Para eles, o único caminho é o do “conhecimento pela via da experiência” – tal como diz a palavra grega gnosis. Como consequência, os gnósticos não aceitam o papel passivo de receptáculo da iluminação divina. No lugar do transe extático, propõem uma escalada consciente até Deus. No lugar da intermediação de uma casta sacerdotal, para os gnósticos, o contato com a divindade é um assunto pessoal e intransferível.

E ainda, se o dilema central do gnosticismo, ou seja, a interrogação sobre a causa do sofrimento no mundo, não corresponde ao pecado herdado de Adão e Eva, o casal original, isso se deve ao fato de que, para os gnósticos, a origem de todo o mal está na profunda ignorância em que estamos mergulhados e que corrompe nossa existência, afirma Marilia Fiorillo. Qual o meio de nos libertarmos desse domínio perverso? Abandonar a embriagez da ignorância e travar contato com a centelha divina adormecida no interior de cada homem. A verdadeira revelação? Olharmos para nós mesmo, nos dizem os gnósticos.