A escrita para se dar a conhecer

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Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – p. D4
06 de dezembro de 2009

Giovanna Bartucci

No conto “O Outro”, publicado em 1975, o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) narra um diálogo entre dois homens, o “velho Borges” e o “jovem Borges”. O que se verifica, no entanto, é que para o “velho”, a conversa se dá em Cambridge, à margem do Rio Charles, no ano de 1969; para o mais jovem, em Genebra, à beira do Rio Ródano, em 1914. O outro homem não seria senão o próprio Borges, aos 20 anos de idade.

Com efeito, mesmo que para o ficcionista de O Aleph (1949) toda literatura seja “mais ou menos autobiográfica” – o que, de qualquer forma, permitiria ao leitor fazer uma diferença entre autor real e ficcional -, o escritor não criou personagem nenhum, mas escreveu e reescreveu sobre o mesmo e velho “Borges” levemente disfarçado.

Uma leitura psicanalítica da obra borgiana entenderia, então, que ainda que o escritor opte por questionar em seus textos a noção de paternidade artística, ao utilizar-se da diluição da figura do autor, sugerimos que ao fazê-lo Borges escreve para se desconhecer. Será, então, por meio deste movimento pendular de observar ora a si mesmo, ora a seu duplo, que a escritura borgiana institui um ato de criação que se faz criação de um sujeito.

A Autobiografia de Alice B. Toklas, que ganhou nova edição no Brasil, dentro da coleção Mulheres Modernistas, da editora Cosac Naify, em 2009, bem poderia receber leitura similar. Mas, vejamos. Publicada em 1933, A autobiografia de Alice Toklas (1877-1967) produzida por Gertrude Stein (1874-1946) é a tentativa bem-sucedida da autora de se tornar famosa e ganhar algum dinheiro com sua escrita.

REUNIÕES
Norte-americana de ascendência judaico-alemã, Stein se estabeleceu em Paris em 1903, lá vivendo a maior parte de sua vida. Com reservas pecuniárias suficientes para se concentrar em seu trabalho, que poderia tomar a forma de uma narração, um poema, uma peça ou “retratos”, sua escrita não cederia nada a ninguém.

E, realmente, as “frases foram a paixão de toda a vida de Gertrude Stein (…) e Gertrude Stein disse que vírgulas eram desnecessárias, o sentido devia ser intrínseco e não ter de ser explicado por vírgulas e além disso vírgulas eram apenas um sinal de que a pessoa devia parar para respirar mas a pessoa devia saber por si mesma onde queria parar e respirar”, explica a autora em A Autobiografia. Entretanto, “saber por si mesmo onde parar e respirar” implica um leitor tão engajado quanto a escritora, para quem a prática literária se constituía na produção de conhecimento, em ligação com o presente atual.

Não à toa. Ao estabelecer-se em Paris, à Rue de Fleurus, 27, sua casa tornou-se ponto de encontro de pintores, escritores, poetas, dramaturgos, músicos e cineastas. Artistas como Pablo Picasso (1881-1973), Georges Braque (1882-1963), Henri Matisse (1869-1954), Juan Gris (1887-1927), Guillaume Apollinaire (1880-1918), Erik Satie (1866-1925), Ernest Hemingway (1899-1961), Scott (1896-1940) e Zelda Fitzgerald (1900-1948), entre outros, agrupavam-se em torno da coleção de arte que Gertrude iniciou com o irmão Leo (1872-1947) ao chegarem à Europa. As concorridas reuniões semanais que promovia à época já sinalizavam, assim, a sua profunda convicção de que “a escrita de um período em que não se estava vivendo na lembrança, e sim numa movimentação necessariamente intensa” deveria dizer respeito a uma produção em que “não (se conta) uma história”, afirmava Stein. E ela se mantinha “estritamente (…) no ponto de vista de onde o escritor escolhe olhar. Quando a visão não está completa, as palavras ficam chatas”, dizia a autora de A Autobiografia.

Essa “visão-escritura” seria, então, a manifestação da estreita relação, vivida por Gertrude, entre a prática literária e a operação pictórica. A “visão completa” – ou seja, literatura – equivale a “viver na composição do tempo presente”, escreveu. Para a crítica Flora Süssekind, em precioso posfácio escrito para Três Vidas (1909), livro de Stein reeditado em 2008, pela mesma editora, seu método composicional, por meio do qual a autora dramatiza seu processo de escrita, ao retratar-se em maior ou menor grau em sua obra, pode ser entendido como a manifestação dessa concepção.

“EMBUSTE”
Gertrude, no entanto, não considerava uma narrativa acerca da vida de duas mulheres que conviviam em regime matrimonial, em sociedade patriarcal, cercadas por celebridades da vanguarda internacional – A Autobiografia – “literatura”, como lembra o crítico e escritor Silviano Santiago, em posfácio inédito para a reedição do livro.

O fato é que A Autobiografia de Alice B. Toklas conta uma história na qual escrevem-se biografia e autobiografia simultaneamente. E “o embuste” – ou seja, Toklas por Stein e Stein por Toklas e, ainda, Stein por Stein – revela o que hoje entendemos como o resultado do processo de o escritor se valer de uma relação próxima e distante com a realidade. Mas, no caso de Gertrude, os relatos que se apoiam em sua história pessoal e meio familiar, os elementos autobiográficos apresentados praticamente sem refiguração, a experimentação e sua preocupação com a manifestação de uma nova forma de narrar tornam sua escritura uma antecipação do que viria a seguir, assegurando o seu lugar central no modernismo anglo-saxão.

Se, como sugerimos no início, em Borges, “escrever para se desconhecer” equivale à instituição de um ato de criação que se faz criação de um sujeito, agora aventaríamos que a escritura steiniana equivaleria à condição mesma de produção de subjetividade, ou seja, a um sujeito – Gertrude Stein – que escreve para se dar a conhecer.