A vida revista na mente

Evandro Affonso Ferreira

Evandro Affonso Ferreira

Publicado no caderno Sabático – O Estado de S.Paulo, p. S7
08 de janeiro de 2011

Giovanna Bartucci

Em “Composição como Explicação”, palestra proferida às Sociedades de Literatura de Oxford e Cambridge, em 1926, Gertrude Stein explicita o que entende por literatura, ou seja, “viver na composição do tempo presente”. Isto porque, diz a autora, “cada período da vida difere de qualquer outro período da vida, não no modo como a vida é, mas no modo como a vida é conduzida, e isso, dizendo de uma maneira autêntica, é composição”.

A sua convicção da necessidade de uma “escrita de um período em que não se está vivendo na lembrança, e sim numa movimentação intensa” se refletirá, então, em sua preocupação com a emergência de uma nova forma de narrar. Assim, uma poética marcada por uma dinâmica de retomadas, repetições e insistências, variações, refigurações e recomeços vêm à luz animar o que Stein denomina presente prolongado.

O que se dá a ver em Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record, 2010), romance de Evandro Affonso Ferreira, entretanto, é justo o oposto. Sua “composição do tempo presente” vem emoldurar a experiência de uma perda jamais superada. Um domingo chuvoso, um choro intermitente, trovões e relâmpagos de uma manhã tempestuosa que não sai do lugar; uma confeitaria familiar, seus habitués, uma garçonete ruiva sedutora proporcionam o moto para um trabalho de memória do “narrador-escritor-quase-octogenário” que necessita presentificar aquela que se foi. Uma vida na lembrança, “minha mãe não me (recordo); esta que vejo rapidamente vez em quando desta mesa-mirante é imaginação de filho escritor distante há setenta anos”.

Será a palavra, então, que o levará “feito Pégasus para todos os cantos do passado do presente do futuro”, enquanto escreve “para esquecer de envelhecer”, sem ter conseguido a “vida toda caminhar para lugar nenhum”. As repetições, retomadas e sutis variações desejam figurar ainda outra vez a infância nunca vivida. “Vítima do desencontro de si mesmo, (o narrador) escreve para frustrar a melancolia e a solidão.”

Vale destacar, contudo, que se em seus livros anteriores Evandro prima pelo uso de aliterações e onomatopeias, características sonoras e sensoriais da linguagem, da mesma forma que seus personagens-narradores se identificam com o estilo do próprio autor, em Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus – tal como o escritor-quase-octogenário que compõe manualmente os vocábulos à semelhança dos tipógrafos –, Ferreira faz das “letras-chumbo” a sobrevivência do verbo-literatura, a sua composição do tempo presente.