O outro: Borges e a psicanálise

borges

Publicado em Percurso. Revista de Psicanálise – Ano X – nº 20 – Págs. 155-156

Primeiro semestre de 1998

Por Marilúcia Mello Meireles

Psicanalista

 

Durante a premiação do Goethe-Preis, Freud aos 74 anos de idade volta a assina­lar, através de uma carta lida por sua filha Anna, os vínculos entre a psicanálise e a literatura enfatizando sobretudo que, antes de a psicanálise se constituir, a literatura já gravitava sobre ela.

 

Sabemos o quanto Shakespeare, Ibsen, Goethe, Sófocles, Schiller, Kleist, Dostoievski e outros foram decisivos na trajetória freudiana em direção ao inapreensível, ao estranho, ao inverossímil, ao desgarrado, ao sem sentido. Não é por acaso que seu primeiro livro é dedicado ao estudo sobre a afasia, se­guindo-se muitos outros sobre o tema. Em todos eles, encontramos sua visão audaz sobre a natureza da produção literária e que demonstra claramente que a apreensão definitiva de um texto literário é ilusória.

 

Neste sentido, o livro de Giovanna Bartucci, ainda que escrito em um espaço e um tempo distantes, traz-nos bem de perto o oportuno encontro com estas duas vertentes do conhecimento humano, aproximando-nos de dois ícones da literatura: Wolfgang Iser e o “mago” Jorge Luis Borges, a fim de pensarmos como se inter-relacionam a obra literária, o autor e o leitor.

 

O livro, com um formato “facilitador”, já nos surpreende de entrada, rompendo com a costumeira tradição editorial. Desde o princípio, Giovanna convida seu leitor a uma relação, diria de subjetivação, exigindo-nos obra, autor e leitor, uma movimentação em tor­no da falsa segurança que es­sas posições engendram. Está dividido em cinco capítulos, com uma bela introdução e prefácio de Luiz Costa Lima e Eneida M. de Souza, respectivamente.

 

A autora dedica um grande fôlego às teorias que trabalham a relação entre retórica e ficção, ressaltando as diversas possibilidades que dispõe o crítico teórico quando examina um texto literário.

 

Apesar de Giovanna não tratar destas questões diretamente, trabalha as implicações do sujeito que é produzido no discurso e que produz discurso, próprios da Análise do Discurso. Desta forma a concepção de sujeito, ainda que distinta da psicanalítica, simplesmente recusa a linguagem como suporte de informações ou de análise de conteúdos.

 

A palavra, por seu caráter polissêmico, permite um distanciamento entre aquele que fala e aquele que enuncia, e o jogo da locução e da enunciação será o espaço da autoria.

 

Giovanna elege Iser como seu interlocutor e em sutil discordância quanto ao “lugar” em que se passa a outra cena – Iser prefere a imaginação – busca uma linha de ação independente, para além da consciência: “o processo de leitura reflete a estrutura da experiência, não na medida em que ‘devemos suspender as ideias e atitudes que conformam nossa personalidade antes de podermos experienciar o mundo estrangeiro do texto literário’, mas quando nossas ideias e atitudes familiares são forçadas a vivenciar o estrangeiro como o texto em si mesmo. Somos incapazes de suspender nossas ideias e atitudes de modo a aceitar o texto literário passivamente. É somente quando estas ideias e atitudes são reexaminadas que o processo de leitura é experienciado” (p. 45).

 

A psicanálise enquanto corpo teórico ainda não era o interlocutor primordial de Giovanna, mas a problemática psicanalítica já a havia capturado. Quando escreveu este livro, no Maine (EUA), quatorze anos atrás, utilizou-se de uma terminologia comum às duas áreas ocasionando inclusive ambiguidades ao empregar expressões tão familiares a nós psicanalistas, em contextos diversos. Por exemplo, em seu texto, Giovanna trata a identificação como condição de possibilidade de experienciar o estrangeiro.

 

A autora já demonstrava à esta época uma sensibilidade aguçada, recusando aceitar o caráter da consciência enquanto fator reducionista de um texto, alertando o leitor por exemplo para o fato de que a identificação seria a apropriação no texto de algo sentido como estrangeiro, unheimlich. O leitor-sujeito, ao reconhecer-se no texto, se reconheceria realizando a operação subjetiva de colher, recolher e conduzir para a construção de algo em si próprio, no jogo desconhecido e transformador da ordem literária (p. 46). A autora, ainda nesta fronteira literatura-psicanálise, já se utilizava espontaneamente do estofo do conceito de identificação aos moldes da psicanálise, sob forma literária.

 

Em seguida, Giovanna nos presenteia com um dos momentos mais ternos de seu livro: o poema “Soy”, “Borges e Eu” e o “Outro”, de Jorge Luis Borges, como exemplos de possibilidades da ocorrência do fenômeno da identificação. Para ela, os dois Borges têm um ponto de ancoragem que o tempo todo sustenta o reconhecimento e o estranhamento. O autor de metaficções e o mestre exemplar para nos divertir e inquietar no “jogo” de significantes, em que a regra é não estabelecer a mínima diferença no livre comércio dos signos.

 

O duplo, segundo Giovanna, será a possibilidade de resgatar o estranho que o leitor reencontra. Sendo assim, o leitor transforma o texto e é transformado por ele, num movimento autoscópico (p. 56) dialético incessante. O texto é em si a construção do “terceiro”, propiciador do encontro de Borges aos 70 e aos 20 anos.

 

Naturalmente, o espaço de uma resenha se torna escasso para a apresentação de uma obra. É bastante interessante percorrer os “estranhamentos” e sustentar a ambiguidade proposta ao seu leitor. Através de vários autores, incluindo particularmente Borges, retoma a definição de linguagem ampliando o lugar da ficção para o além-metaficcional. A linguagem ganha assim seu território como condição de possibilidade de transposição na criação, exigência imposta a todos enquanto sujeitos do fazer ficcional.

 

“Construir significados e fazer ficção”: esta nos parece ser a conclusão a que chega ao longo de seu livro. Escreve o posfácio em 1996, justificando o estranhamento provocado pela publicação do texto muitos anos após sua redação pelos efeitos a posteriori do reencontro com algo que há tempo encontrava-se fora de circulação psíquica, e também de sua intenção de não transformar seu texto em “psicanálise aplicada”. “Aquilo que é ressignificado no tempo do après-coup está certamente relacionado ao encontro com o estranho” (p. 109).

 

Apoiando-se no texto freudiano “O estranho” (1919), retoma e particulariza, no que tange ao sujeito na obra literária, o fenômeno do duplo tomando as vertentes Rank e Freud. Concorda que o duplo “provoca susto, pavor, esvaziamento, não reconhecimento, o Unheimliche”: o retorno do reprimido e a natureza secreta das experiências familiares. Este alerta para a existência de um Outro e a constituição de um topos permanente de conhecimento e desconhecimento de si.

 

Giovanna conclui que “há aqueles para quem a escrita é uma forma de organização de ideias e pensamentos, e há aqueles para quem podemos considerar o processo da escrita como uma forma de des­conhecimento do mesmo, que tem como objetivo ser instrumento de maior conhecimento de si” (p. 114).

 

Sabemos quão problemático é escrever nessa zona de tensão que perpassa duas áreas do conhecimento sem incorrer em equívocos.

 

O trabalho trilhado pela autora a respeito do lugar metaficcional na Literatura e o recorte que fez dentro da doutrina freudiana nos parece a marca de seu percurso. Nas palavras de Costa Lima, a literatura foi a “matéria viva”, a psicanálise, solo próprio de possibilidade de captação de efeitos e quebra de fronteiras.

 

Finalizando e ainda dentro do “espírito da coisa”, resta-me dizer ao leitor de Percurso que Giovanna demonstra, através de Borges: a realidade da construção, possuir singular formação que lhe confere o privilégio e maestria de conduzir de maneira elegante e rigorosa o ofício tanto da matéria literária quanta da psicanálise.

 

Trata-se de uma boa oportunidade de ler um livro escrito por uma psicanalista sobre o fazer literário a partir da velha recomendação freudiana.