Uma saga de corpos infinitos

Viskovitz

Você É um Animal, Viskovitz? apresenta ao leitor o humor rebelde de Alessandro Boffa

Publicado no caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Pág. 28
19 de março de 2000

Giovanna Bartucci

Você é um Animal, Viskovitz (Cia. Das Letras, 1999, 144 págs.), de Alessandro Boffa, é uma narrativa prenhe de humor e ironia. Pois é, não podemos de forma alguma confundir escárnio com ironia. Se o escárnio logo remete o leitor, ou interlocutor, ao reconhecimento do menosprezo e/ou desdém do escritor ou falante acerca de algo ou alguém, a ironia não chega a expressar desamor.

E mais, se a ironia consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio, ou até mesmo com intenção depreciativa em relação a outrem, há algo de muito curioso em seu uso.

A ironia é como aquela pitadinha de tempero que altera todo e qualquer sabor: a possibilidade mesma de levar o interlocutor, ou leitor, ao reconhecimento de seu estado de não saber, ou melhor, ao reconhecimento de seu estado de não-saber-que-sabe.

Um rebelde

 

O humor, então, nem se fala. Se é, afinal, uma disposição de espírito, o humor não é resignado, mas rebelde. Se sua essência é poupar os afetos à qual uma determinada situação daria origem, afastando com uma piada a possibilidade de expressão das emoções, o humor afirma, na verdade, a vulnerabilidade sim do sujeito.

Ao se “recusar a ser afetado” pelos “traumas externos”, aquele que produz o humor está dizendo: olha a vida aqui, e por certo não passarei por ela passivamente. Assim é que podemos de forma prazerosa e ativa sair do lugar ou posição que nos foi designada, independente de qual seja, para circularmos mais livremente. Afinal, o humor não é resignado, mas rebelde. Mais interessante, ainda, é quando aquele que produz o humor é ele mesmo objeto de seu próprio humor, já que é consciente de que não é dono (ou pelo menos não o único) de sua própria casa.

É essencialmente isso o que faz Alessandro Boffa, em Você é um Animal, Viskovitz. Viskovitz, personagem principal desta saga, narra seu percurso por este ecossistema muito humano no qual convivem arganazes, caramujos, insetos, pássaros, alces, estercorários, porcos, mais roedores, mais papagaios, peixes, aracnídeas, camaleões, cães, mais vermes, tubarões, micróbios etc. etc.; ou seja, Viskovitz e Liuba, sua paixão, em seus diferentes corpos.

E não são simples os relacionamentos mútuos entre determinado meio ambiente e flora, entre fauna e os microrganismos que neste ecossistema habitam – ainda que tudo isso se dê em nome do equilíbrio geológico, atmosférico, meteorológico e biológico. Formações de compromisso são necessárias.

Reflexos assassinos 

 

Mas, veja só, Viskovitz é um acrônimo de Very Intelligent Superior Kind Of Very Intelligent and Talented Zootype. É, nessa medida, que Viskovitz está sempre a rir de si mesmo. Embora impossibilitado de viver em sociedade por causa de seu reflexo assassino escorpiano, Viskovitz não cessa de procurar a companheira ideal com a qual possa educar seus filhos, envelhecer ao seu lado. Mas, imagine, quando encontra efetivamente a dita cuja, já agora (ou anteriormente) no “corpo” de um arganaz, Viskovitz não sabe mais o que é realidade ou fantasia, e perdem-se, entre sonhos pessoais e coletivos, Viskovitz e Liuba.

Passando pelo “comportamento sexual” dos caramujos, pelo comportamento estereotipado dos passeriformes, por aquilo que um alce tem na cabeça além de ideias, ou seja, sabres (ou melhor, cabelo), pela luta pela sobrevivência dos estercorários, por heranças identificatórias dos porcos, por processos de seleção artificial criados nos laboratórios a que são submetidos os roedores, pela busca de sabedoria dos papagaios, pelo desejo das larvas de dominar o mundo e reduzir à servidão o próximo e destruir toda criatura com mais de um mícron de altura, são muitas as questões com as quais se defrontam Viskovitz e Liuba.

E, passando pela impotência dos “skorpios” diante do automatismo de seu sistema nervoso primitivo e sua expectativa de que a psicanálise possa curá-los, pela descoberta dos camaleões do segredo para ser si-mesmo, ou seja, renunciar a si, esvaziar-se e deixar-se preencher, pelo trauma psicológico causado ao tubarão-filho ao ver seu pai estraçalhar sua mãe sem deixar nem um pedacinho para ele saborear, pela impossibilidade de um vegetal de suicidar-se, são muitas as temáticas que demandam de Viskovitz e Liuba reflexão, afinal, é sempre de sua inserção neste ecossistema geracional e a possibilidade mesma de viver e não sobreviver a absoluta vulnerabilidade do sujeito que se trata.

Mas, talvez, a característica mais significativa e borgiana desta narrativa é que Viskovitz e Liuba perdem-se entre sonhos e realidades. Ao final, melhor dizendo, no princípio, já não sabem mais quem havia sonhado quem, ou com que vida haviam sonhado para si. Mas não será essa, então, a grande qualidade de todo humor: ao reconhecer sua própria vulnerabilidade, o sujeito está, simultaneamente, afirmando certa liberdade em relação às “neuroses de destino”? Pois sim, até que provem o contrário, e  como bem diz Viskovitz, “cada despertar (é) uma morte, viver (é) morrer”. E, talvez, ainda devamos dizer não a tudo aquilo que ameace o que não podemos perder, o que signifique vida, por certo.