A criação da sexualidade feminina

ninfomania-historia-carol-groneman-frete-gratis-1811-MLB4770888706_082013-O

Publicado no caderno Mais!  Folha de S.Paulo  Págs. 20-21
18 de março de 2001

Giovanna Bartucci

Sem dúvida, na discussão sobre a natureza e o lugar da mulher, a questão da sexualidade feminina ainda é a mais delicada. Não é à toa que Carol Groneman, professora de História no John Jay College de Justiça da Universidade da Cidade de Nova York, passou dez anos efetuando pesquisas em áreas nas quais tinha pouca experiência, como a medicina e o direito, intrigada pela ideia do que a ninfomania poderia revelar sobre as atitudes em relação à sexualidade feminina, nos Estados Unidos, durante os últimos duzentos anos.

Se para alguns de seus alunos o significado do termo corresponderia a uma mulher hipersexuada ou obcecada por sexo, para outros significaria o mesmo que vício sexual; outros ainda não saberiam como definir “ninfomania”. Também seus colegas se mostraram indecisos quanto ao significado do termo — “não teria a revolução sexual eliminado-o por completo”? Pois, sim, Ninfomania (Imago, 2001, 254 págs.) nasce da tentativa de oferecer respostas para perguntas tais como: “Quanto é demais?, Quanto não é suficiente?, Há uma quantidade saudável, normal e natural de sexo? E quem decide? São esses exatamente os problemas tratados num estudo sobre a ninfomania”, dirá Groneman. E não há por que não nos adiantarmos: “ao longo de 200 anos, sua definição instável e incerta (do termo) sugere apenas o quanto a cultura molda nossa compreensão do comportamento e desejo sexual feminino, agora e no passado”, conclui a autora.

“‘Ninfomania’ vem da combinação de duas palavras de origem grega: ‘mania’, significando loucura ou frenesi, e ‘ninfo’, significando uma noiva ou, mais geralmente, uma donzela. Na mitologia, as ninfas eram semidivinas, habitando os rios, o mar, os bosques, ou as colinas. Sua beleza podia levar os homens à loucura. Em latim, ‘nymphae’, plural de nympha, significa os lábios internos da vulva, acrescentando outra dimensão ao significado do termo.”

Mas, atenção: se, como doença, a ninfomania é um conceito relativamente moderno, suas raízes são (muito) antigas. Como nos diz a autora, “o médico grego Galeno, no século 2º, por exemplo, acreditava que a fúria uterina ocorria particularmente entre jovens viúvas, cuja perda da satisfação sexual podia levá-las à loucura. Com base na teoria de que os humores do corpo deviam ser mantidos em equilíbrio, textos médicos gregos antigos presumiam que as mulheres, porque seus humores eram frescos e úmidos, precisavam do intercurso sexual para abrir, aquecer e drenar o sangue.

Fúria uterina

Isso levava a um desejo insaciável de sêmen por parte das mulheres; o que resultou, diante de sua menor capacidade para controlar esses desejos, na convicção de que as mulheres eram mais carnais do que os homens” (será essa a razão pela qual Don Juan é, afinal, celebrado como um herói, tendo, ao longo dos anos, se esquivado da castração, o equivalente da clitoridectomia e ovariotomia recomendadas por alguns médicos como tratamento para a ninfomania?).

Enfim, há também quem diga que se Eva, em aliança com Satã, não tivesse seduzido Adão, estaríamos todos ainda vivendo no paraíso, e mantendo relações sexuais “sem luxúria”.

Pois, sim, de acordo com Groneman, terá sido a partir do século 18 que mudanças drásticas na compreensão da sexualidade feminina começaram a ocorrer. As noções modernas de “fúria uterina” ou ninfomania passaram a refletir premissas bastante diferentes sobre o desejo sexual feminino, transformação essa que se deu, em graus variados, em todo o mundo ocidental. No século 19, o caráter “inato” das mulheres, antes luxurioso, foi “recriado” como recatado e submisso. Menos apaixonadas e racionais que os homens, as mulheres eram vulneráveis à ninfomania e outras “doenças sexuais”, especialmente durante a puberdade, menstruação, parto e menopausa.

Enquanto esse novo “ideal” referia-se à mulher como uma categoria universal, na realidade incluindo apenas as mulheres brancas de classe média, as mulheres “mais primitivas”, com “uma natureza mais próxima do animal, quer fossem pobres, imigrantes ou (negras), tinham maior promiscuidade sexual”. Nesse contexto, a ninfomania era uma doença em desenvolvimento permanente.

Se para a autora a medicina foi o ponto de partida para o estudo da ninfomania, “a história estende-se além da medicina, até o direito, a psicologia, e a cultura popular, inclusive a interação entre eles”. “Como a ninfomania vista por meio das lentes jurídica, médica, psicológica e popular é um (termo) muito ambíguo”, Groneman apresenta sua história organizada em capítulos de várias camadas.

O capítulo dedicado a “ninfomania do corpo” é a expressão de “muitas teorias médicas diferentes (que) tentavam explicar as causas da ninfomania: nervos esgotados, inflamação no cérebro, lesões na coluna, cabeças deformadas, além da genitália irritada e clitóris ampliado”. A Sra. R., vinte anos e grande disposição, viúva recente, atribuía à leitura de romances e ao comparecimento a festas alegres na juventude a causa de “sua imaginação ser atiçada ao mais alto grau”. Ou seja, de breves referências sobre uma paciente determinada a exames em larga escala da doença, os casos discutidos pela autora revelam tentativas de médicos  e de suas pacientes  para determinar o significado da ninfomania.

Se ainda, no início do século 20, os modelos biológicos não haviam sido descartados, as explicações psicológicas começaram a apontar para a ninfomania como um distúrbio de personalidade. “A semininfomaníaca, a esposa erotizada, encorajada pelas noções modernas a esperar a satisfação sexual conjugal, o que muitas vezes não acontecia; a ‘nova’ jovem das classes trabalhadoras, sexualmente precoce, ‘hipersexual’ e delinquente; e a ‘Nova Mulher’, masculinizada, sexualmente aberrante (…), as reformistas, sufragistas, profissionais instruídas, exigindo seu lugar na arena pública”, são as novas interpretações das mulheres e de sua sexualidade.

Assim, passando pelos “estudiosos do sexo”, por casos de “ninfomania nos tribunais”, e pela “revolução sexual” – “a ninfomania desapareceu do manual de distúrbios da Associação Psiquiátrica Americana” (DSM) –, a autora chega à conclusão de que “por trás das portas fechadas de consultórios médicos e vestiários masculinos, surgiu uma ‘ninfo feliz’, nas décadas de 1960 e 1970”. A ninfo feliz refletia, então, “as modernas teorias sexuais sobre o potencial multiorgásmico das mulheres”. No entanto, se a “contrarrevolução sexual” adquiriu impulso na década de 1980, refletindo ainda as mesmas preocupações sobre quanto sexo seria demais, quanto não seria suficiente e quem decidiria, tratava-se de um movimento conservador em ascensão que atacava o que era percebido como “um colapso da moral ao melhor estilo de Sodoma, manifestado pelo sexo pré-conjugal, direitos gays, aborto, pornografia, e educação sexual”. Nas palavras de Groneman, “do meio dessas areias movediças culturais, a ninfomaníaca assumiu outra imagem, a da ‘viciada em sexo’.

Nesse modelo inspirado pelos Alcoólicos Anônimos, o sexo, como o álcool e as drogas, podia levar a um comportamento viciado” – como em outros vícios, não há “cura”, a pessoa se mantém “em recuperação” pelo resto da vida.

Finalmente, foi no cinema que diferentes versões da ninfomania foram apresentadas, nos anos pós-revolução sexual: a femme fatale, elegante e perigosa, explicitamente bissexual; a heroína sexual pirada, pronta para se divertir; a jovem carente sexualmente, à procura de amor; a negra, assertiva sexualmente, que “precisa ser posta em seu lugar”; a associação da compulsão, da mentira patológica e da frigidez com a ninfomania.

Mas, como destaca a autora, “nenhum deles ofereceu o que se presumiu (…) que a libertação sexual feminina acarretaria: uma mulher sexual apaixonada e plenamente realizada”. De acordo com Gronemam, a “mulher da década de 1990 não tem medo do desejo sexual em si; apenas não compreende por que isso continua a afugentar seus namorados”. Aliás, antes que me esqueça, “satiríase” é o equivalente masculino do termo “ninfomania”.