O sexo não é sexualidade

Thomas Laqueur

Thomas Laqueur

O francês Thomas Laqueur afirma que o corpo da mulher tem sido compreendido como versão menos importante do corpo do homem

Publicado no caderno Cultura – ZERO HORA – Pág. 02
22 de dezembro de 2001

Giovanna Bartucci

Fortuito, extremamente fortuito o lançamento de Inventando o sexo: corpo e genêro dos gregos até Freud (relume Dumará, 313 páginas), de Thomas Laqueur. Dito de forma condensada, seu trabalho versa sobre a criação, não do gênero, mas do sexo, sendo “uma elaboração da afirmação de Simone de Beauvoir de que as mulheres são o segundo sexo”. A hipótese básica do autor é a de que o poder da cultura é representado nos corpos – “forja-os, como em uma bigorna, no formato necessário”.

Voltado, então, para o problema do relacionamento entre o corpo e a diferença sexual e a natureza da diferença sexual em geral, Laqueur sustenta que não há qualquer conhecimento específico da diferença sexual em termos históricos a partir de fatos indiscutíveis sobre os corpos. Nessa direção, o autor pretende demonstrar, “com base em evidência histórica, que quase tudo que se queira dizer sobre sexo – de qualquer forma que o sexo seja compreendido – já contém em si uma reivindicação sobre gênero”. Laqueur dedica-se, assim, a comprovar a hipótese de que o modelo de sexo único (“carne única”), por meio do qual o corpo da mulher é conhecido como uma versão menos importante do corpo do homem, não desapareceu, mesmo quando da entrada em evidência, durante o Iluminismo, do modelo de dois sexos (“duas carnes”), sendo o corpo da mulher, aqui, o oposto incomensurável do corpo do homem.

“Quanto mais examino registros históricos, menos clara se torna a divisão sexual; quanto mais o corpo existia como fundamento do sexo, menos sólidas se tornavam as fronteiras”, dirá Laqueur. Assim é que só houve interesse em buscar evidência de dois sexos distintos, diferenças anatômicas e fisiológicas concretas entre o homem e a mulher quando essas diferenças se tornaram politicamante importantes. O que o leva a afirmar que “o sexo, tanto no mundo do sexo único como no de dois sexos, é situacional; é explicável apenas dentro do contexto da luta sobre gênero e poder”.

De acordo com Laqueur, foi a “descoberta” contingente do prazer da mulher que abriu a possibilidade da passividade e “falta de paixão” na mulher: “A alegada independência da concepção com relação ao prazer criou o espaço no qual a natureza sexual da mulher podia ser redefinida, debatida, negada ou qualificada. E assim seguiram-se as coisas. Infindavelmente”. A indignação e desapontamento do autor com a “confirmação” de suas descobertas, no entanto, chega ao “ápice” com Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Assim, “com Freud o processo chegou à indeterminação mais cristalina. O que começou com uma história de prazer sexual feminino e sua tentativa de apagar isso, tornou-se a história de como o sexo, assim como o gênero, foram constituídos”. Se Laqueur termina seu livro com Freud, não é por Freud ter chegado ao final da construção da diferença sexual, mas por ter apresentado seu problema de forma tão brilhante. De acordo com o autor, a narrativa freudiana acerca da sexualidade feminina é uma versão da narrativa moderna central de sexo único em guerra com dois sexos. “O que poderia ser chamado de patriarcado talvez tenha parecido a Freud a única forma possível de organizar as relações entre os sexos, levando-o a escrever como se seus sinais no corpo, pênis externo ativo versus vagina interna passiva, fossem ‘naturais’”, reage. Assim é que, a “narrativa freudiana” deve ser vista como uma narrativa da cultura disfarçada em anatomia, uma vez que “a sexualidade feminina migra de um ponto para outro, do clitóris masculinizado à vagina inegavelmente feminina”.

No entanto, parece ser aí que reside uma das “tensões” existentes no trabalho de Laqueur. Embora reconheça que deu “relativamente pouca atenção às ideias conflitantes sobre a natureza da mulher ou da sexualidade humana”, Laqueur parece não levar até as últimas consequências as descobertas freudianas. Torna-se necessário, então, o trabalho prévio e fundamental de destrinchar o campo polissêmico que contém o conceito de sexual e é por ele contido no discurso psicanalítico, uma vez que a escuta freudiana do sexual contraria as diferentes interpretações forjadas pela sexologia no Ocidente desde a segunda metade do século 19. Isto é, se a noção de corpo na psicanálise não corresponde a noção de corpo na medicina é porque é do corpo erógeno que se trata aqui: o bebê humano, dependente dos cuidados maternos para sua sobrevivência, terá o seu corpo circunscrito em zonas erógenas, pelo adulto que dele se ocupa.

De fato, é mesmo a partir do universo simbólico do adulto que a hierarquia do prazer ocupará a superfície corporal do bebê. Será, então, um conjunto de traços sobre a sexualidade, tais como prematuridade, incompletude, insuficiência, polimorfismo, inexistência de objeto fixo da pulsão, entre outros, que torna-se importante considerarmos, ao tratarmos do corpo erógeno, uma vez que caberá ao complexo de Édipo, enquanto estrutura, organizar o devir humano em torno da diferença dos sexos e da diferença das gerações.

É verdade, o complexo de Édipo assume sua dimensão de conceito fundador quando Freud o articula com o complexo de castração. Assim, se de acordo com a compreensão de Laqueur acerca da leitura freudiana da sexualidade feminina, a vagina “é o oposto do pênis, uma marca anatômica da falta de uma coisa na mulher que o homem tem”, sua interpretação parece desconhecer exatamente a radicalidade da matéria freudiana. Se em psicanálise, o uso do termo “falo” sublinha a “função simbólica” desempenhada pelo pênis na dialética intra e intersubjetiva, o termo “pênis” é reservado para designar o orgão na sua realidade anatômica. Na mesma medida, se a ideia de que a “inveja do pênis” como mola da evolução da menina para a feminilidade já havia sido vivamente contestada enquanto Freud vivia, o importante aqui é sublinhar que diante destas equivalências fundamentais, ou seja, a assimilação da feminilidade à passividade e a equação inconsciente “ser mulher = ser castrado”, a feminilidade aparecerá para a psicanálise como o próprio lugar do paradoxo. Assim é que só teremos acesso a feminilidade como um traço que se inscreve no registro da falta e do vazio, que está no cerne da experiência do desejo.

Não é à toa que autores pós-freudianos têm avançado a idéia de que a feminilidade é a forma crucial de ser do sujeito, uma vez que sem a ancoragem nas miragens da completude fálica e da onipotência narcísica, a fragilidade e a incompletude humanas são as formas primordiais de ser do sujeito. A feminilidade remeteria, então, a algo que transcende a diferença de sexos, ultrapassando a oposição entre as figuras do homem e da mulher, uma vez que, na psicanálise, as figuras do homem e da mulher, do masculino e do feminino foram construídas de acordo com a lógica fálica. Com efeito, a feminilidade realocaria a diferença de gênero, num limiar no qual não é mais o falo que está em questão.

É curioso, mas embora tenha discretamente sugerido “que o modelo de sexo único (de acordo com o autor, presente também em Freud) pode ser compreendido como um exercício para preservar o Pai, que representa não apenas a ordem mas também a própria existência da civilização”, Laqueur parece não extrair as implicações de seu próprio pensamento. Pergunto-me: por quais searas nos levaria, então, o autor caso considerasse, por exemplo, o lugar do corpo na configuração do social constituída na atualidade? De fato, se um número cada vez maior de mulheres “opta” pelo modelo da Barbie americana, temos, no outro extremo, a androginia mais absoluta. E ainda, enquanto o roteiro clássico do Édipo, a criança que deseja o pai do sexo oposto e se identifica com aquele de seu próprio sexo entra em crise, também é fato que nunca se revelou tão verdadeira uma das descobertas mais fundamentais da psicanálise, o caráter não adaptativo da sexualidade humana. Afinal, por onde nos levaria o pensamento de Laqueur caso considerasse os efeitos do trabalho das ONGS, das comunidades organizadas, da luta mundial contra a Aids sobre esses nossos corpos de todo e cada dia? Com certeza, esse seria um novo trabalho.


* Este artigo é uma versão levemente reduzida de “Entre bigornas, corpos e sexo” (2001), publicado em Percurso. Revista de Psicanálise – Ano XV – nº 28 – Págs. 131-132 – Primeiro semestre de 2002.