O divã na TV

Primeira edição do programa Big Brother.
Holanda, 1999

Primeira edição do programa Big Brother. Holanda, 1999

O sucesso de formatos opostos como reality show e novela reflete a complexidade do público contemporâneo

Publicado na revista BRAVO! – Págs. 19-21
Julho de 2002

Giovanna Bartucci

Na verdade, a televisão, na era contemporânea, não parece estar promovendo mudanças sociais significativas, ou mesmo figurando algo antecipadamente, como propõem alguns especialistas. A televisão na era da globalização parece estar, sim, refletindo “diferentes estados de alma”, no que se refere às subjetividades na atualidade. O que dizer, afinal, do sucesso mundial dos reality shows, inclusive no Brasil? E, ao mesmo tempo, o que dizer da existência de uma teledramaturgia brasileira que – de fórmula inédita, hoje mundialmente respeitada e copiada – acaba de ter com uma novela como O Clone, de Glória Perez, os mais altos índices de audiência? A pergunta, então, parece ser: quem é este telespectador que, de forma contraditória, é capaz de render suas homenagens ao folhetim de Glória Perez, para, na seqüência compartilhar – de forma “interativa” – do destino alheio, num reality show?

Com efeito, o “pós-moderno” parece ser mesmo o lugar da ausência de garantias. A globalização – tendo produzido o enfraquecimento de fronteiras, de distinções entre culturas, aliado a uma mobilidade econômica, geográfica e cultural – tem trazido consigo um contingente de excluídos cuja demanda por reconhecimento é cada vez mais violenta. Entre a TV aberta e a TV por assinatura, temática, a indústria televisiva é, hoje, peça fundamental de uma indústria cultural de massa diretamente associada à globalização. Assim, ao testemunharmos uma reconfiguração de cenário com a convergência entre TV, Internet, entrada de capital estrangeiro e a conseqüente busca por novos formatos, nos habituamos a tratar a televisão globalizada como uma força homogênea e hegemônica, com tal poder sobre o público que, efetivamente, nos coloca problemas fundamentais no que diz respeito ao controle de conteúdo e fluxo de informação. Isso não quer dizer, no entanto, que a audiência tenha se tornado mais homogênea – ao contrário, está mais heterogênea, e suas respostas são cada vez mais complexas. E, ainda que sucesso, aqui, queira dizer aprovação de público – neste caso, composto por todas as classes sociais –, índices de audiência e percepção acerca do telespectador não se sobrepõem. Principalmente se considerarmos que os índices de audiência, massivamente divulgados, nos contam acerca do número de telespectadores que assiste a determinado programa, enquanto raramente se publicam pesquisas que mostrem quem eles são e porque o fazem.

É nesse sentido que cabe, aqui, a interrogação acerca do sucesso mundial dos reality shows. Representante de uma “estética” que pretende substituir ficção por realidade, no Brasil, encontramos os reality shows nos mais diversos formatos: Big Brother Brasil e Casa dos Artistas, claro, mas também “as pegadinhas” do Silvio Santos e do Sérgio Malandro, Sufoco do Domingão do Faustão, No Limite, Linha Direta, da Globo, Território Livre da Bandeirantes, entre outros. O fato é que, ainda que pretenda substituir ficção por realidade, o reality show é uma obra aberta, idealmente roteirizada para posterior avaliação, no decorrer de sua exibição. Com os participantes dirigindo-se à câmera “como se” a um interlocutor, sendo o interlocutor o próprio telespectador, é possível pensar o gênero como aquele que envolve algum tipo de participação dos cidadãos, reduzidos – até então – a posição de “meros” espectadores. Mas não me parece que num espetáculo “interativo” sejamos convidados a “optar o tempo todo”. Se nos oferece a ilusão da plenitude ao valorizar um presente fugaz e eterno, ao nos ofertar a certeza da satisfação garantida – seja por meio da participação dos cidadãos na resolução de um crime, ou por meio da alegria ou sofrimento compartilhado –, o formato parece dar a ver uma certa configuração subjetiva contemporânea. A audiência, não mais anônima, deseja, sim, ser olhada – reconhecida no seu anonimato.

O que parece, então, estar em pauta, na atualidade, são configurações subjetivas nas quais o autocentramento se conjuga com o valor da exterioridade. Assim é que ter, aqui, é ser. Ter objetos, usufruí-los, proporcionaria a satisfação almejada e implicaria ser reconhecido como imagem por um outro que também o é, situando o sujeito numa determinada definição identitária. No entanto, se para cada “ato exibicionista” é necessário um “ato voyeurista”, espera-se tudo do objeto e nada do sujeito. Esvanecer os limites entre interioridade e exterioridade, entre ficção e realidade indicaria a necessidade de permanência deste círculo vicioso no qual a ilusão da plenitude é dada a partir da manutenção do outro-telespectador no lugar de “voyeur”. Se o que seduz não é necessariamente o conteúdo dos programas, tal ato voyeurista significaria, então, o reconhecimento deste outro-exibicionista, e teria como função libidinizar essa “audiência anônima”, genuinamente ávida por reconhecimento.

E como avaliar, então, o sucesso da teledramaturgia brasileira? Considerada gênero menor, limitado ao entretenimento e à comercialização de produtos, fugindo ao controle de seu autor na medida em que são prolongadas, encurtadas ou alteradas de acordo com os índices de audiência e número de anunciantes, as telenovelas encarnam os atributos associados à cultura de massa. Entretanto, ao misturar características do melodrama, da notícia e do entretenimento, a telenovela é capaz de mobilizar audiências compostas pelos mais diferentes segmentos de público. Assim, se na década de 70, profissionais de teatro passam a trabalhar nas novelas, com o objetivo de realizar os ideais nacionais e populares que o teatro experimental não teria sido capaz de alcançar, na década de 80, as novelas passam a privilegiar temas nacionais, tratando de questões políticas centrais. Na década de 90, a telenovela chega, então, a intervir diretamente na conjuntura política e social. Com efeito, como atestam especialistas, nos últimos 50 anos, a teledramaturgia brasileira vem acompanhando as transformações tecnológicas, políticas, sociais e culturais que marcaram a história do país, diluindo, assim, as barreiras formais que as separam de gêneros como o telejornal, o documentário e – sugerem alguns – do reality show.

Há aqui, no entanto, uma diferença substancial, e é isso que torna-se importante destacar. Enquanto o reality show tem como fundamento a ausência de reflexividade – ou seja, o tomar a si próprio como objeto de reflexão –, configurando-se como o encontro e manutenção do par exibicionista-voyeur, o que podemos constatar é que a teledramaturgia brasileira aponta para ainda outra configuração subjetiva. De fato, configuração esta que remete à subjetividade construída nos primórdios da era moderna, época em que as noções de interioridade e de reflexão sobre si instauraram-se como eixos constitutivos do sujeito. Assim é que, ao tratar da “contraposição entre o Ocidente e o Oriente”, de dramas éticos, morais e amorosos, da clonagem humana e do debate em torno da dependência química – cujo ineditismo pareceria substanciar-se como o trunfo da novela –, o que O Clone, folhetim clássico, em nada original em seu formato, fez foi primar pela reflexividade.

Ao discriminar universos distintos, ao contrapor os mundos real e ficcional – por meio da introdução, por exemplo, de depoimentos verídicos de dependentes químicos, em oposição a possibilidade do telespectador acompanhar o “pensamento” dos personagens –, os valores, que no formato reality show são consumidos como mercadorias num sistema especulativo, adquirem, na teledramaturgia, importância significativa. Sejamos claros: é somente quando inscritos nos registros da alteridade e da diferença – o que supõe, necessariamente, o reconhecimento de nossa insuficiência e incompletude –, que substantivos como o amor, a família, a amizade e predicados como honestidade, integridade, lealdade e generosidade passam a ter uma função elaborativa, reflexiva, sublimatória. Mesmo que ainda tenhamos profunda “resistência” em reconhecê-lo, supondo-nos (sempre) homogeinizados e alienados, sentados “passivamente” diante da TV.