Tudo o que Jacques Lacan falava delas

1140467

Colette Soler atualiza contribuições do psicanalista sobre a mulher e a diferença entre sexos no inconsciente e na civilização

Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – Pág. D3
02 de Julho de 2006

Giovanna Bartucci

O Que Lacan Dizia das Mulheres (Jorge Zahar, 246 páginas), da psicanalista francesa Colette Soler, reúne artigos que tiveram como objetivo atualizar o alcance das contribuições do psicanalista Jacques Lacan sobre a questão da diferença entre os sexos no inconsciente e na civilização. Como sugere Soler, Freud recorreu ao Édipo como uma resposta e uma solução. À pergunta “como pode um homem amar sexualmente uma mulher?”, a “solução”: não sem haver renunciado ao objeto primordial, a mãe, e ao gozo referido a ela, ou seja, não sem uma castração do gozo.

Em outras palavras, enquanto uma estrutura que ordena o desejo, ao complexo de Édipo caberá organizar o devir humano em torno da diferença dos sexos e das gerações, por meio da promoção da interiorização da interdição oposta aos dois desejos edipianos – incesto materno e assassinato do pai. Interdição essa que, abrindo acesso à cultura por meio da submissão e da identificação ao pai portador da lei, regula os caminhos do desejo.

O inconsciente freudiano, contudo, não conhece a biologia e abriga apenas o que Freud encontrou nele: as pulsões parciais. A pulsão oral – a criança que pede o seio à mãe; a pulsão anal – a mãe que pede as fezes à criança; ou, ainda, a pulsão escópica – que confere ao olho a função de tocar com o olhar, de despir com o olhar. E a pulsão genital, aquela que assinalaria para cada um o parceiro sexuado? Não há pulsão genital no inconsciente e, como observa Soler, é a essa pergunta que responde o Édipo freudiano. Assim, enquanto as pulsões parciais em si ignoram a diferença sexual, “Freud descobriu que, no inconsciente, a diferença anatômica é tranformada em significante e reduzida à problemática do ter fálico”.

De fato, Freud se apercebe da prevalência de um significante único, o falo – o pênis –, passando a formular a diferença sexual em termos anatômicos. Constrói, assim, a tese, que a muitos escandalizou, que faz da falta fálica o princípio dinâmico de toda libido, e que afirma que a identidade sexuada do sujeito é forjada a partir do medo de perdê-lo, naquele que o tem, e da vontade de tê-lo, naquela que é privada dele. “É a orientação do desejo sexuado como tal que se torna passível de explicação. E logo se vê que, para Freud, nesse aspecto, homo e heterossexualidade estão em igualdade”.

Entretanto, assim como o ser sexuado do sujeito não se reduz à anatomia, o Édipo produz o homem, não produz a mulher. De fato, se, na medida em que se descobre privada do pênis, a menina torna-se mulher quando aguarda o falo – ou o pênis simbolizado – daquele que o tem, “a mulher é definida unicamente pelas vias de sua parceria com o homem”, salienta Soler. Não à toa, feministas desde Freud protestam em face a uma hierarquização do sexo, que faz da falta fálica o núcleo do ser feminino, colocando-o sob o signo de um valor menor.

Contudo, ao retomar a questão, Lacan apreende sua inteligibilidade: “Não é do pênis que se trata, mas do falo, de um significante que, como todo significante, tem lugar no discurso do Outro, sempre transindividual”. Nos anos 1970, entretanto, Lacan não objeta ao falocentrismo do inconsciente, circunscrevendo-o à lógica da castração, e acrescenta que “essa lógica não regula todo o campo do gozo: há uma parte dele que não passa pelo Um fálico e que permanece, real, fora do simbólico. Dizer que a mulher não existe é dizer que é apenas um dos nomes desse gozo, real”. No entanto, “este outro gozo, suplementar, que, longe de excluir a referência ao falo, soma-se a ela, não deixa de ser situável por uma outra lógica, esta não de conjunto: a do não-todo”, destaca ainda Soler.

Assim é que, ao se colocar a questão acerca da “marca própria da mulher”, Soler sugere que “a marca própria que designa o limiar, a fronteira da parte ‘não’ do todo fálico, do não-todo”, aproxima-se de “uma vertigem do absoluto da qual o amor e a morte são apenas os nomes mais comuns” – um “traço de aniquilação”. O que então diferencia a leitura de Soler é que a autora quer assinalar que essa marca que chamou de “aniquilamento” indica uma estrutura em ação. E, de fato, “se A mulher, escrita com maiúscula, é impossível de identificar como tal, uma vez que ‘não existe’, isso não impede que a condição feminina exista”. Como salienta Soler, contudo, será somente em face da possibilidade de uma estrutura “em ação” que “o ‘O que quer uma mulher?’ com que Freud interrogava o desejo e a sexualidade feminina, em nível privado, (assuma) hoje uma dimensão totalmente diferente, social e coletiva”.